2008-05-05

OPINIÃO: Cotas, integração identitária e educação

Vou aproveitar a deixa do movimento de artistas e intelectuais contra as cotas para expressar minha posição. Se me lembro bem, o que deu ensejo a essa questão das cotas foi a constatação da baixa presença de negros em cursos superiores em comparação com os percentuais dos extratos raciais do país. A pergunta a ser feita é “o que gera esses baixos índices”?

É impossível não defender a meritocracia; isso é ponto pacífico. Ninguém crê ser correto privilegiar indivíduos por raça. Igualmente, também é ponto pacífico que o sistema de cotas não deve ser um modelo de longo prazo; é uma medida “emergencial”. Portanto, a idéia das cotas seria reparar uma dívida história do Estado para com os negros, pela escravidão ou pela exclusão social. Contudo, esse aspecto emergencial só se justifica se forem tomadas medidas de longo prazo para melhorar o ensino público fundamental e médio. Ou seja, deve-se corrigir as injustiças no curto prazo enquanto se fomenta o fim da raiz dessa injustiça, fomentando a igualdade de oportunidades para todos e o sucesso com base no mérito (e isso implica sérios investimentos em educação). Essa, a meu ver, seria a base conceitual das cotas, mas ainda é possível que se esteja misturando exclusão social com exclusão racial.

Existe preconceito racial no Brasil, sim; mas a falta de acesso à educação pública e gratuita de boa qualidade é igual para brancos, pardos, índios e negros. Por razões históricas e por conta do sobrevivente preconceito racial (hoje ligeiramente mais velado, mas ainda influente), há uma maioria de brancos nos estratos de renda superiores e uma maioria de pardos e negros nos estratos inferiores. Isso é dizer o óbvio, e todo brasileiro sabe disso. Mas a média dos serviços públicos ainda deixa a desejar para todos os que não podem pagar por serviços privados de melhor qualidade, independente de raça. O fator excludente é a pobreza, e não o preconceito racial. Não nesse caso.

Por que, então haveria uma maioria de negros entre os pobres e uma maioria de brancos entre os ricos? Seria o preconceito racial dos descendentes da burguesia escravocrata que, por preconceito, se priva de incluí-los? É pela via da raça o atual mecanismo de exclusão e sua soluçao? As duas primeiras perguntas são retóricas, e é da terceira que quero tratar.

É minha crença e minha expectativa que não, pois imagino haver um fundo social/ identitário e não unicamente racial para o reduzido número de oportunidades envolvendo os mais pobres (e, visto que há uma grande interseção entre raça negra e pobreza, os negros).

As relações sociais são fomentadas em pequenos “clubes”; em espaços determinados. Nossos amigos estudaram conosco na mesma escola, na mesma faculdade; praticavam esportes na mesma praça, no mesmo bairro, na mesma rua, no mesmo prédio, no mesmo condomínio; trabalhavam lado a lado conosco na mesma empresa. Tornamo-nos colegas deles por um mecanismo de identidade: sentimos que neles havia algo de nós, uma proximidade cultural e intelectual. Tínhamos gostos e hábitos similares.

É sabido que grande parte das oportunidades é oferecida ao membros de um círculo de contatos – vide o famoso networking, a rede de contatos que devemos explorar para conseguir melhores oportunidades. Ao abrir vaga, o empregador a oferecerá preferencialmente a “um dos seus”, nunca aos com os quais não se identifica. Só existe “democracia empregatícia”, e em tese, nos concursos públicos.

A questão, portanto, a meu ver, é identitária. Simplificando grosseiramente, brancos (ricos) excluem negros (pobres) não porque os crêem incapazes, inferiores ou os vejam sob qualquer aspecto inerentemente negativo; excluem pois, até o momento, ainda não houve uma total fusão cultural-identitária entre brancos e negros e, assim, os primeiros não consideram os segundos como “um dos seus”. A escravidão gerou um racha social, negros e brancos vivendo em países diversos entre os quais, em 120 anos, ainda não se criaram pontes suficientes. Mas é evidente e inegável que a questão caminhou em sentido positivo.

A igualdade racial dar-se-á no Brasil pela via social, pela integração de cultura, mental, identitária, de hábitos, de costumes, de passado, de história comum; e isso deve resultar em relacionamentos sociais mais profundos. Enfim, se dará por homogeneização cultural, quando deixar de haver identidade racial, quando um indivíduo de uma raça olhar para outros indivíduo de outra raça e ver um brasileiro, um latino-americano, um ser humano – e não um branco ou um negro. Se isso se der, as relações sociais (as escolhas que fazemos e as relações que privilegiamos) deixaram de espelhar a divisão social com base na raça.

Os clubes sempre existirão, mas, com o tempo, o passado e a história cultural deixarão de espelhar a raça para expressar somente o país, a região, a cultura, o nicho social. Será um país sem raça. Esse processo ocorrerá no longuíssimo prazo e a sociedade vem evoluindo nesse sentido. Mas e até lá? Negamos a oportunidade a mais algumas gerações?

O sistema de cotas tem um lado muito positivo, que é admitir que existe uma relação entre pobreza e exclusão racial e tentar reduzir o ranço nefando da escravidão no país. Mas se queremos desenvolver uma sociedade justa, devemos construir um ambiente de iguais; e temo que as cotas possam gerar novos preconceitos.

Nesse sentido o sistema de affirmative action parece mais correto. Ao invés de abrir vagas para um determinado extrato, estimula-se que aquele extrato se desenvolva para que atinja o atual nível de competitividade. O Itamaraty possui um sistema desse; fornecendo uma valor para afro-descendentes com o qual podem pagar cursos preparatórios, livros e etc. O teste permanece sendo o mesmo para todos. Isso é agir nas bases, mas custa muito mais.

No fundo, é essa cultura de que Educação é gasto e não investimento que tem que acabar no Brasil. Repito aqui as palavras da Miriam Leitão: “No século XX, conseguimos crescer inserido em um modelo de desenvolvimento que não exigia muito do cérebro dos trabalhadores. Para conseguirmos um novo ciclo de crescimento, precisamos investir na capacitação das pessoas. É isso que a China e a Índia já estão fazendo.”

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